A universidade na mão dos putos

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No mesmo dia em que aqui publiquei “O mais fundo da crise” (19/10), apareceu no jornal universitário “A Cabra” um artigo de Elísio Estanque, sociólogo e investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra: “Praxe: socialização ou perversão?” É uma boa análise deste fenómeno, quer na sua natureza – em geral tanto mais rigorosa quanto mais fechada e elitista é a instituição, quer na sua evolução para a comercialização e a degradação, à vista de todos. Continua a assentar na humilhação do caloiro frente à “grandeza” do mais velho, no nosso caso o “doutor”, o qual é sobretudo, como se sabe, o aluno do 2.º ano que, segundo o código praxista, nem chega a ser um puto, é só meio (“semi-puto”).

Note-se que a praxe entre os estudantes, e Elísio Estanque refere-o, é só a parte visível e chocarreira do formalismo que estruturou e continua a estruturar a Universidade. Mas que, curiosamente, as instituições mais recentes se apressaram a copiar numa tentativa de criar uma história e uma tradição que as justifique, lhes dê segurança, talvez até respeitabilidade.

É sabido que têm ocorrido em várias instituições cenas lamentáveis, como humilhações inadmissíveis, agressões físicas e psicológicas graves e até um caso, pelo menos, de violação. O que evidentemente entra na esfera criminal e deve – tem de ser – punido pelos tribunais. As vozes contra estas violências e a sua denúncia têm sido inúmeros, mas à onda de opinião se mantêm indiferentes, ou quase, as associações académicas, a maioria dos docentes e os responsáveis institucionais, que costumam desculpabilizar os abusos e fazer vista grossa.

Ora, a verdade é que as universidades sofreram uma profunda transformação social, democratizaram-se e massificaram-se. E tendo-se alterado as condições sociais e económicas que faziam delas elites algo fechadas, grande parte destes ritos de iniciação, se alguma vez tiveram sentido, já o perderam de todo; até porque se ordinaziraram, funcionando como modalidades deseducativas e até corrosivas. E o cidadão comum, que se habituou a encarar as praxes estudantis com uma certa bonomia, tem vindo a perceber o agravamento dos «contornos de futilidade e de irracionalidade», como diz Elísio Estanque. Face ao chocante e grotesco que é ouvir, por exemplo, bandos de jovens de leite entoar, rua fora, aos berros, cantigas e lenga-lengas obscenas, sem a mínima preocupação pela péssima imagem que dão de si e da Universidade, isto é, «exibindo em público a face mais ordinária da mentalidade juvenil, sob a batuta dos/das pseudo doutores/as», o que pensar? Que, obviamente, «não é a praxe nem é a tradição de Coimbra que ali estão». De facto, o que ali está é a imagem repugnante de uma boa parte da juventude que perdeu, e disso dá provas em todo o lado, a noção de algum decoro, ou seja, é «um retrato do vazio, da perda de rumo e de valores que caracteriza grande parte da actual geração universitária», como diz Elísio Estanque.

A ideia não é acabar com as praxes, já se viu que é difícil. Mas uma Universidade não pode estar na mão de uns tantos rapazinhos/as que, com o traje de estudante debaixo do braço, quando está calor, ou sob floridos guarda-chuvas, quando chove, se fazem de estudantes sem noção do que isso significa nem respeito pela instituição a que pertencem. Por isso, como diz ainda Elísio Estanque, é «preciso uma refundação dos princípios da praxe, incutindo-lhes um novo sentido pedagógico, conteúdos informativos e comportamentos amigáveis e acolhedores», enfim, outro nível, porque «a praxe corre o risco de resvalar para perigosos comportamentos antissociais, e obrigar à acção repressiva». Compete ao corpo estudantil e às estruturas associativas, e, obviamente, às instituições que governam as universidades, «saber travar a tempo as formas “rascas” de que a mesma se vem revestindo nos últimos tempos». De facto, o que se vê e ouve é frequentemente uma vergonha, pública e privada; para eles e até para nós.

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