“Cavaco Silva matou a ambição dos portugueses”

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P – Em 2007 adquiriu o capital maioritário da Aliança, que passou a pertencer ao grupo Bacalhôa. Porque decidiu investir na Bairrada?

R – Foi uma oportunidade de negócio, que foi concretizada depois de termos tido conhecimento que havia necessidade de fazer um aumento de capital. Eu tinha estado nas Caves Aliança há muitos anos e disse “ok, vamos lá ver”. E vimos que, além da grande tradição nos espumantes e das aguardentes, eram produzidos vinhos de regiões onde não estávamos presentes: um pouco do Douro, da Bairrada, do Dão. Foi o casamento ideal.

P – Um casamento tão feliz que trouxe para aqui parte da sua coleção. O “Aliança Underground Museum” já é um caso de sucesso…

R – Quis aliar o vinho à arte. Um dia estava a ver os pisos subterrâneos das caves e aquilo estava abandonado. Com as novas tecnologias, deixou de ser necessário colocar milhões de garrafas de espumante em estágio. Por isso, tínhamos toda aquela área (cerca de um quilómetro e meio de túneis) praticamente sem utilidade. Quis juntar o útil ao agradável e fizemos ali um grande investimento de melhoramento.

P – Tem imensas coleções, mas dimensão do seu espólio não o fez esquecer as coleções de infância…

R – Claro que não. Faço isto por paixão. Não sei de onde herdei isto – talvez tenha sido influência dos turistas que eu recebia na empresa Madeira Wine quando lá trabalhava. Comecei por colecionar os selos de cartas que vinham de várias partes do mundo: recebia ao envelopes, cortava, punha na água e retirava o selo. Um “maçadão”…

P – Tem saudades desses tempos?

R – Não sei. Tive uma infância razoável. O meu pai trabalhava na Madeira Wine. Fui para lá com 13 anos e meio. É curioso que entre mim, o pai, o meu irmão, trabalhámos 118 anos naquela empresa.

P – Foi daí que surgiu essa paixão pelo vinho?

R – Acho que sim.

P – É verdade que esteve 15 dias no seminário?

R – Menos. Só estive uma semana (risos).

P – Portou-se mal?

R – Não. Entrei numa segunda-feira e, no sábado, o padre superior quis falar comigo. Queria saber se eu tinha devoção para ser padre. Eu era um pedacinho atrevido, mas tinha uma certa vontade de ser padre. Perguntou-me qual era a minha ambição. E eu disse que queria ser missionário. Insistiu na pergunta. Ora, eu era criança e disse “pode ser que um dia chegue a cardeal e depois a Papa”. No domingo voltou a chamar-me e disse que eu não tinha vocação para ser padre. Apanhei um grande desgosto.

P – Queria mesmo ser padre?

R – Acho que sim, queria… Se calhar por influência da minha mãe que era muito católica e por causa do meu irmão que estudava naquele seminário. E, depois, naquela época, o padre era uma pessoa de bem, com algum estatuto na sociedade. Hoje, nem padres, polícias ou professores… Isto é tudo uma “bagunça”.

P – Essa resposta ao padre superior já revelava a sua ambição de querer chegar longe…

R – Talvez. Quando eu era miúdo ia para o topo da montanha para ver mais longe, mas não era suficiente. Via os emigrantes chegarem vindos da Venezuela, América ou da África do Sul. Quis experimentar a emigração porque naquela altura as coisas eram difíceis.

P – Custou-lhe emigrar?

R – Eu não tinha problemas em emigrar, mas custou porque deixei a minha família e os meus amigos. Quando fui para África do Sul tive que aprender o inglês e dois dialetos. Mas quando uma pessoa tem necessidade aprende depressa.

P – Conseguiu e fez fortuna…

R – Felizmente…

P – Graças a muito trabalho?

R – Sim, mas não só. Há muita gente que trabalha – alguns mais do que eu –, mas é preciso ter sentido de oportunidade, sorte, ideias inovadoras. Eu acho que nada é impossível. Se um ser humano faz, o outro também é capaz de fazer. E se não souber fazer, tem que encontrar pessoas que saibam.

P – Uma das coisas de que mais se orgulha é o facto de ter contribuído para o fim do apartheid…?

R – Na Madeira conheci africanos que jogavam futebol. Achava-os simpáticos e gostava deles. Não percebia o porquê de não haver direitos iguais. Fui para África do Sul e, à medida que os anos foram passando, fui conhecendo ministros, presidentes, políticos e fui vendo que cada vez mais me aproximava do problema. Era a lei que estava em causa e que dizia que o africano não tinha os mesmos direitos. Era com isso que eu não concordava. Aquilo não podia continuar.

P – Regressemos a Portugal… Vivemos um momento de crise. Vai continuar a investir no país?

R – Estou muito desapontado com Portugal… Sou madeirense e tenho uma grande afetividade por este país. Com a adesão de Portugal à União Europeia em 1986 e o alargamento, achei que seria altura ideal para regressar. Pensava que o nosso atual Presidente – na altura era primeiro-ministro – ia aproveitar essa oportunidade. Eu queria, enquanto português, participar no futuro do país. Infelizmente, isso não aconteceu. Estagnámos em coisas de pequena dimensão e esquecemo-nos da “big picture”. Foi uma grande deceção que tive.

Ainda há pouco tempo, Cavaco Silva dizia que temos que nos virar para o mar. Só descobriu isso agora? Deve estar xexé. Na altura em que ele foi primeiro-ministro, pagaram aos donos dos barcos para destruírem as embarcações, para não se produzir trigo, para não produzir isto, para não produzir aquilo. Ora, é fácil as pessoas costumarem-se a não ter ambição. Ele matou a ambição dos portugueses.

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