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Aos 62 anos, com três décadas de dádiva cultural à cidade, Virgílio Caseiro não faz balanços, pois ainda tem muito para dar.
Quem é o Virgílio Caseiro?
A pergunta é interessante mas é apenas uma meia pergunta. O Virgílio Caseiro é apenas metade de uma pessoa, que tem dado a sua vida à cidade, agora com 62 anos e que, na globalidade, é Virgílio Alberto Valente Caseiro. Ao abrigo da minha forma de ser e maneira de participar no tecido social, não comparação entre o homem que eu sou, designado pelos extremos, Virgílio Caseiro, que é aberto à sociedade e extrovertido, disponível para o diálogo e para as iniciativas, e o outro que habita dentro de mim, que é o Alberto Valente, que é muito mais reservado, mais intimista, digamos mesmo que mais pessoaniano, mas que, ainda assim, consegue coexistir e dialogar com o Virgílio Caseiro para que, na globalidade da personagem, não haja discrepâncias nem inconvenientes para os outros que com ele convivem.
Um dia, numa entrevista à televisão, assumiu que é um anormal…
Esta dialéctica entre duas personagens que coexistem na mesma pessoa alerta logo para alguém que é anormal. E porquê? Porque alguém que patrocina favoravelmente o desenvolvimento de uma personalidade dupla, com uma vertente maníaca e uma outra depressiva. Portanto, aqui, a anormalidade caracteriza uma personagem, que é o Virgílio Alberto Valente Caseiro enquanto maníaco-depressivo, ou bipolar – e sem intervenção médica, porque sou eu que me vou medicando -, mas também no sentido sociológico do próprio termo Durante muito tempo preocupei-me com a normalidade e com a anormalidade. Aliás, durante parte da minha vida dediquei-me, mesmo, à anormalidade, enquanto musicoterapeuta, e por causa de tudo isto permiti-me concluir que ser anormal não é grave. A história está cheia de anormais, até porque não regista nem retém os normais,
Alguns meio loucos…
Claro. Mas, afinal, o que é um normal? É um normal que acabou por conseguir maioria. É aliás por isso que nós, de quatro em quatro anos, lá vamos votar, na esperança de que o partido que escolhemos consiga ganhar de forma a que nós passemos a normais. Infelizmente, às vezes, muitas vezes, perdemos…
É o caso dos eternamente comunistas?
Exactamente, os eternamente disponíveis e fraternos sociais.
O quê? A designação comunista está fora de moda?
Eu não sou comunista, nunca fui. Eu sou solidário com um pacote de ideias que caracteriza uma ala de intervenção de esquerda. Mas tenho muito respeito por gente de esquerda e de direita, acho que são todos muito inteligentes, sobretudo porque são capazes de argumentar de forma diferente para dizer o mesmo.
De uma outra entrevista, retive a confissão de que se sente um incompreendido, sobretudo entre os mais poderosos…
Eu dou-me bem com toda a gente e tenho tido a sorte de, nesta cidade, que frequento desde os tempos de estudante pré-universitário, ter feito em cada pessoa um conhecido, em muitos um amigo e, numa pequena minoria, um amigo íntimo. E é fundamental saber viver com esta lucidez. Eu não troco informações, ou dados como agora se diz, da mesma forma com conhecidos ou com amigos e muito menos com amigos íntimos. Quando não se tem a noção desta gradação, corre-se o risco de contar a todos aquilo que só podem contar a alguns, gerando inconvenientes e zangas. Felizmente, nestes anos todos, fiz muitos amigos e também alguns inimigos, que dizem mal de mim, o que é bom, porque quem não é incómodo não é respeitado.
Assume-se incómodo?
Se tenho perfil para incomodar alguém, então que incomode, como gosto, os pequenos intelectuais de grande porte, que esta cidade tem sido prolífera a divulgar. E, inclusive, reconhecendo-lhes um estatuto de dignidade e de aconselhamento que me faz pena e que me revolta. É gente que, com a capacidade de análise que tem, diz mal de tudo e de todos, nada está bem, nada serve. Depois, refugiam-se nos bens de qualidade acrescentada que Lisboa ou o Porto nos podem dar, contribuindo assim para minorar o desenvolvimento da cidade de Coimbra, em termos culturais, tornando-a quase que subserviente, em relação à intelectualidade macrocéfala da capital. Ora, ao contrário daqueles falsos intelectuais, balofos e barulhentos, nós, enquanto cidade universitária de sempre, temos intelectuais de grande humildade, que quase ninguém dá por eles e, infelizmente, não são chamados a tomar parte nas decisões esclarecidas que permitam tornar Coimbra, novamente, numa cidade exportadora de cultura.
O Virgílio nasce em 1948, em Ansião. O que foi viver para lá do Sicó nos anos cinquenta?
Eu fui sempre um privilegiado, quer pelos pais que tive, que me amaram muito, quer pelos familiares mais directos, como um avô materno que tive, que tudo fez por mim. Ele era também um artista, um pouco louco, e hoje, vão lá talvez 40 anos, ainda choro ao pensar nele. Foi sempre de uma disponibilidade absolutamente louca. E depressa se apercebeu que, dentro de mim, havia algo…
Ele também era músico?
Era um homem do teatro. Tinha uma sensibilidade extraordinária, daqueles que não se contentam em ter um quintal só por um quintal. Tinha que ser uma obra de arte, tinha que ter um caramanchão à maneira francesa, para juntar os intelectuais da vila em tertúlias muito ricas. Aliás, o café do meu avô era um centro de cultura, onde ele preferia vender uma bica por semana a um intelectual do que 250 litros de vinho por dia a um qualquer paisano… No fundo, tinha todas as características que o levariam à falência se não fosse a ajuda da minha avó, que era bem mais lúcida e comercialmente mais capaz.
E a música, como apareceu?
A casa do meu avô, como se vê, era um verdadeiro cadinho cultural, em Ansião. Ele tinha seis filhos e todos aprenderam a tocar um instrumento. Também a minha avó tocava bandolim e cantava muito bem. O meu avô teve a lucidez de perceber que eu tinha um bocadinho de jeito para cantar. Por isso, organizava uns serões, com amigos, e obrigava-me a cantar. Mas eu tinha vergonha e ele lá me punha atrás de uma porta…
Fado?
Fado e canções populares. Aliás, talvez por isso, ainda hoje tenho uma predilecção especial pela nossa etnomusicologia, que é um património incomparável. Aliás, como costume dizer, a nossa música tradicional, seja popular ou urbana – como o fado de Coimbra, por exemplo -, é um património tão importante como a Torre da Universidade ou o Mosteiro dos Jerónimos. Mas, com um grande conveniente: pode ser levado para todo o lado com a facilidade que todos conhecemos.
Como é que foi a mudança para a cidade?
Logo de pequenino comecei a aprender música e ainda hoje estou ligado a um instrumento que logo conheci: a guitarra portuguesa, que é uma colateral da guitarra de Coimbra. Tive, como era norma nestas coisas, um professor que era barbeiro, a quem estou muito agradecido. Depois, quando vim para Coimbra, logo me inscrevi no Orfeon Académico, para cantar, mas também na Tuna e, curiosamente, acabei fundador, sem o saber, do GEFAC, que saiu de dentro da Tuna. Depois, episodicamente, passei pelo TEUC e tudo isto me incentivou a levar por diante um projecto artístico…
Foi bem aceite pela família?
Infelizmente, na altura, nenhuma família normal gostava de ter um filho artista, que não era vida para ninguém. O meu pai gostava era de ter um filho médico. E, se não pudesse ser, que fosse advogado. E, não sendo, ao menos engenheiro. Ora, apertado nesse colete de forças, acabei por escolher Engenharia Mecânica. Um curso que frequentei pacientemente até que um dia disse “basta, senão ainda acabo e então é que não consigo sair deste molho de bróculos”…
Como é que resolveu o embaraço do serviço militar?
Facilmente. Em 1969 houve a crise académica e eu fui chamado para a tropa. Calhou-me a Força Aérea e vi-me colocado na Ota, onde fiz o curso de cadetes. Como ali tudo gira à volta da torre de controlo, resolvi oferecer-me para ir para Angola, concretamente para Luanda, onde não teria tanto risco e teria o dobro das regalias académicas, para acabar o curso. Mas não me deixaram, por ter sido o melhor aluno do curso, o que me valeu um convite para dar aulas. E ali fiquei quatro anos, em paragem intelectual, a dar aulas de matemática e afins…
Onde é que estava no 25 de Abril?
Quase que estava na Ota. Mas não. Saí antes. Ainda voltei para o Orfeon e recomecei a vida académica. Mas a engenharia já não me dizia muito. E já tinha entrado no Conservatório, que, entretanto, acabei. Por isso, decidi tornar-me professor de música. Na altura, e talvez ainda hoje, a sobrevivência de um músico passa muito por dar aulas.
Ali por finais da década de 1970, descobre-se um Virgílio Caseiro empreendedor. Fundou o Coro dos Professores, uma escola de aprendizagem para crianças, grupos de música antiga…
Desde sempre tive a noção de que, se queria dar algo à arte, a minha dinâmica teria de ser aproveitada à exaustão do meu querer e do meu ser. Por outro lado, teria que ter um comportamento profissional tão intenso e tão sério para que os meus filhos, que criei com tanto amor, pudessem ter orgulho no pai. Ninguém pode morrer tranquilo se se sentar numa cadeira a criticar os outros e não der o melhor de si.
É incontornável falar da escola de música…
É a menina dos meus olhos. Surgiu em 1979, com seis miúdos, na ACM. Desde então, tem vindo sempre a crescer, agora com cerca de 130 miúdos por ano. Aliás, se fizermos as contas, é qualquer coisa como um universo de 2.200 crianças, ao longo destes anos, o que penso que é muito significativo
E também no Orfeon…
Foi um momento importante, em 1982, ainda com o período revolucionário muito recente. Foi um amigo querido, o Paulo Vaz de Carvalho, que falou em mim aos directores do organismo, quando saiu o maestro anterior, o Artur Carneiro. O trabalho deve ter sido aceitável e, por isso, lá fiquei cerca de década e meia. Anos em que coloquei tudo o que podia e não podia, a tempo inteiro, criando laços de união e de fraternidade com os orfeonistas extraordinárias… Criámos muitas coisas novas, um grupo de música tradicional, integrámos a encenação dos espectáculos e até recuperámos o fado de Coimbra, com a colaboração de um amigo de longa data, o Fernando Monteiro – que é bom ser lembrado, por exemplo, pela colaboração decisiva que deu à Escola do Chiado…
Foi fácil a transição para os Antigos Orfeonistas?
Em termos musicais foi extraordinariamente fácil. Lamentavelmente, as circunstâncias não foram as melhores, pois vivia-se um tempo de grande contencioso social interno, a propósito da substituição do maestro. Tive que ter paciência e tranquilidade para ultrapassar todos os conflitos, até em assembleias-gerais conturbadas, de modo a respeitar a verdade democrática. E a verdade é que, volvidos sete anos, lá continuo e todas as quezílias foram ultrapassadas, embora à custa de uma purga interna.
Vão lá três décadas. Que balanço faz dessa dádiva cultural à cidade?
Aí está um problema. É que, apesar de ter 62 anos e talvez porque convivo com essas crianças de cinco/seis anos, a minha maturação intelectual e cognitiva não corresponde ao calendário da vida. Ou seja, sinto-me muito adolescente e, como tal, algo inconsciente em relação aos resultados, com que nunca me preocupei. A verdade é que vivo na esperança de fazer um trabalho futuro com as crianças. Não me preocupo com sínteses. Quem ficar cá que as faça.
Pelo meio, a docência, no ensino superior politécnico.
Coimbra é uma cidade de doutores, como sabemos. O que tem uma vantagem: se uma pessoa for doutor pode ser perfeitamente incompetente; agora, se não o for, tem de ser muito mais do que competente, senão ninguém o respeita. Por isso, eu que fiz o curso superior de canto, no Conservatório de Lisboa, mas percebi depressa que tinha também que fazer a licenciatura. Por isso, quando foi criada, na Universidade Nova de Lisboa, corri a inscrever-me. E assim andei, duas ou três vezes por semana, a caminhar para Lisboa, no comboio das 10 para as cinco da manhã, a ter de aturar os gloriosos militares do glorioso Movimento das Forças Armadas. Lá acabei a licenciatura e, coisa bizarra: poucos dias depois, convidaram-me para ser professor na Escola Superior de Educação. Entrei como professor auxiliar, o que me criou problemas terríveis, com mau ambiente durante alguns anos. Mas tudo se resolveu. E lá fiz a minha carreira de uns vinte anos de funcionário público, até me reformar. E deixei a escola. Não porque estivesse cansado, porque adoro dar aulas, mas porque estava farto de dar oito ou dez horas de aulas, por semana, e, num único dia, à quarta-feira, ter de estar 16 horas a aturar um Conselho Científico, onde cento e tal cientistas, cada um com vinte e poucos anos, falam e falam de coisas extraordinariamente importantes, mas que estão todas escritas, pelo que só o são para eles porque ainda não leram os livros.
O abandono da Orquestra Clássica do Centro é um passo de risco na carreira?
Eu não gostaria de falar muito nisso, embora não pense que, tendo saído, não possa falar da orquestra. Aliás, penso que devo, embora haja pessoas que trabalharam bem mais do que eu. Mas a orquestra é também um filho meu. Agora, eu penso que para as organizações prosseguirem é fundamental que alguém seja imolado. Fui eu. E não me queixo de ninguém, pois fui eu que arranjei a lenha, acendi o pavio e sentei-me na pira. Só espero que o meu sacrifício como maestro sirva para que os políticos desta terra façam força junto de quem de direito, em Lisboa, olhe para esta orquestra como par, em relação às outras orquestras regionais que existem no país. Ou, se não podem fazê-lo, por questões legais, que façam como se faz tantas vezes na Assembleia da República e alterem a legislação numa tarde e criem condições de equiparação, em termos administrativos.
A simbiose Orquestra-Virgílio Caseiro surge com Manuel Machado e Teresa Portugal, tem o seu auge com Carlos Encarnação e Mário Nunes, mas desmembra-se com o mesmo Carlos Encarnação e Maria José Azevedo Santos e, curiosamente, quando um músico chega a ministro da Cultura…
Pessoalmente, desde o início, com o Partido Socialista, até agora, todos se disponibilizaram para levar por diante o projecto. Agora, a Câmara de Coimbra tem os seus limites orçamentais. Com a Dra. Maria José Azevedo, embora tenha sido muito curto, o trabalho que fiz deu para reter uma grande abertura, um discurso muito refinado e muito consequente e uma humildade que só pode estar ao serviço dos grandes intelectuais. Em relação ao Dr. Mário Nunes, com quem trabalhei muitos anos, devo dizer que, tendo o seu feitio muito próprio, foi sempre de uma disponibilidade e de uma amizade para com a orquestra que louvo e penso que muito do sucesso se lhe deve muito.
O seu currículo dá conta dos seus 10 anos como musicoterapeuta. Incomodou-o a polémica com a mãe de uma criança deficiente, que terá recusado como aluno, na escola de música?
Há coisas que nos incomodam, quando o nosso posicionamento não é muito claro. E há outras que, por serem de tal forma injustas, bradam aos céus. Nesse caso, foi ainda pior porque me vi abocanhado por um meio como a Internet, que percorre toda a galáxia sem ter a possibilidade de, chegando a uma verdade, poder retirar as acusações. A verdade é que, embora esteja ultrapassado, lá continua tudo na Internet. A verdade é que a mãe da criança fez o melhor que pensou. Eu tive o cuidado de lhe telefonar, para poder explicar que o tipo de trabalho que estava a fazer com uma turma iria transformar, rapidamente, o filho dela numa espécie de palmeira plantada no deserto e não iria respeitar nem o desenvolvimento da criança nem o envolvente. Fui mal entendido, chamaram-me fascista, segregacionista e sei lá que mais. Não o sou, nunca o fui, tenho trabalho feito nessa área, pelo que entendi não responder nem alimentar a polémica. Nunca mais falei no caso, senão agora e espero que não tenha de voltar a fazê-lo.
Por que andou pelo radiomodelismo e, agora, pelo golfe e não fez como Rossini, que chegou aos 40 anos e passou a dedicar-se apenas à culinária?
O Rossini era grande. Ele fez tudo, todas aquelas óperas bufas e amores musicados que conhecemos, até aos 37 anos, e já não tinha mais para fazer. Foi tal como o Bach, que levou à exaustão a perfeição das formas que, depois dele, já nada mais havia para fazer, pelo que, pura e simplesmente acabou o barroco. Não é o meu caso. Nem sou um génio nem tive a oportunidade de fazer essa riqueza gastronómica musical, tenho o problema inverso do Rossini: ele chegou aos 37 anos e tinha tudo feito; eu estou com 62 e ainda tenho muito por fazer.
E qual a receita?
Um bocadinho de música, uma pitada de instrumento, um pedaço de canto. Depois leva-se a lume brando… E há tantos projectos para fazer em Coimbra, como eu tenho avançado, nestes encontros do Facebook…
Por exemplo?
Por que não apadrinhar, em Coimbra, uma orquestra de excluídos sociais. A ideia já existe, na Venezuela. É claro que não temos o Chavez nem o dinheiro do petróleo, mas há sempre possibilidade de encontrar apoios e financiamentos.
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