Regresso às aulas

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Completa-se no dia de hoje o “regresso às aulas”. Curiosa expressão esta que tem o cunho das grandes superfícies comerciais e que, paulatinamente, se foi impondo nas referências e hábitos de todos, pais, educadores e alunos. O “regresso às aulas” é a renovada fórmula que tomou o lugar do antigo “início do ano”, quando milhares de jovens cidadãos retornavam à escola com os seus cadernos, lápis e livros a cheirar a novo. Hoje, além do risco ampliado de toxicidade de alguns materiais escolares e de os jovens chegarem munidos do devastador telemóvel, a grande diferença entre aqueles modos de começar as aulas reside na forma como a lógica comercial que se impôs ao acto prosaico de começar o ano. Agora, ao passar a porta da escola, os alunos provaram já ser exímios consumidores que lidam com perícia com as cativantes filas e as irresistíveis promoções de material escolar.
Trazem consigo tiques e modos de estar e de pensar induzidos pelo moderno festim do consumo. Influenciados pelo ritmo imediatista do consumo e agindo ao sabor da busca contínua de satisfação pessoal, desafiam, sem o saber, o tempo lento da prática da escola que é o da preparação escolar e da formação cívica dos cidadãos. Há que reconhecer a virtude deste desafio. Mas há também vícios que precisam ser acautelados. Como instituição, a escola foi sempre sujeita a pressões, umas políticas, outras religiosas, umas vindas do mercado de emprego, outras dos anseios e tensões das famílias e da sociedade em geral. Todos desejam a reforma rápida do ensino para acomodar a escola a agendas de maior eficácia funcional. Sem capacidade de resposta satisfatória, a escola fragiliza-se, tal é a precariedade dos recursos humanos e materiais de que dispõe. Um destes recursos ausentes é o tempo lento, justamente o das mudanças estruturais bem sucedidas.
O “regresso às aulas” que hoje culmina ocorre, uma vez mais, em contexto de turbulência. À sempre renovada e sempre incompleta reforma do ensino, juntam-se as escolas que fecham e as que abrem, as colocações atrasadas, a confusão das carreiras e avaliações, os (mega)agrupamentos de escolas, a aplicação do recente estatuto do aluno… e nada nem ninguém garante a estabilidade e a serenidade essenciais para que estes turbilhão da mudanças dê lugar a uma reforma estrutural com qualidade. Sob pressão e incapaz de promover a reforma rápida que lhe exigem, a escola padece de endémico estado de stress institucional que alastra aos professores e arrasa o que quer que reste de serenidade e entusiasmo indispensáveis para que uma efectiva reforma do sistema educativo possa singrar.
Há uns bons duzentos anos que tudo isto começou e a nossa escola se desligou das reformas do ensino da Europa. A meio deste percurso, a centenária República, que agora estamos a celebrar, fez progressos notáveis. Mas a escola republicana, hoje como ontem, continua na cauda da Europa e é assustador o atraso revelado nos recentes números da OCDE.
É preciso renovar o engenho para reformar a escola. Mas é também urgente reconhecer à escola o direito ao tempo lento das reformas civilizacionais. A escola não se reforma, ou não o faz com qualidade, ao ritmo repentista e nervoso dos acontecimentos da sociedade de consumo que, eufemisticamente, o “regresso às aulas” traduz.

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